Noite de fevereiro. No instante em que Guilherme entrou na sala, Dona Maria assistia um noticiário. Ele sorria com algumas sacolas nas mãos. Guloseimas, presentes para sua mãe, que era a única pessoa com quem dividia o lar
- Ai meu filho... Não precisava disso não. É o seu primeiro salário, não precisa gastar comigo.
- Pára com isso mãe... Isso não é nada. Você carregou tanta coisa sozinha por tanto tempo. Cê merece.
Pegou uma coca e subiu para o seu quarto. Cansado, porém feliz. Posteres do Pearl Jam, U2, R.E.M. e Ramones enfeitavam as paredes de seu pequeno quarto. Uma cama arrumada de forma impecável, um guarda-roupa e um computador completavam a decoração. Deitou na cama exausto e começou a pensar sobre o show. Vai ser fóda, era o que repetia sua cabeça. Pensava em como seria pegar folga naquela sexta-feira só para chegar às cinco da manhã na fila. U2, cacete, vou ver U2. Era a banda de sua vida. Não tinha todos os albúns, nem sabia cantar todas as músicas com um inglês perfeito, mas conhecia todos eles e, com certa enrolação, certamente saberia cantar cada uma das músicas no show. Ligou o computador e colocou "Walk On" para tocar.
Assim como todos garotos de dezessete anos, Guilherme tinha muitos sonhos. Alguns desenhos em cima da escrivainha mostrava o maior deles: Ser arquiteto. Desde pequeno respondia com convicção à todos que o perguntavam 'O que você quer ser quando crescer?'. Até os dez anos de idade também tinha o sonho de conhecer o pai, mas depois de certo tempo começou a perceber que não valia a pena. Sua mãe apenas dizia que o rapaz por quem ela se apaixonou morreu no dia em que ela deu a notícia sobre a gravidez. Agora já não importava mais. Estava feliz da vida por ter conseguido um emprego e tinhas expectativas de entrar na faculdade no fim do ano. E ah, tinha o show do U2, que era o motivos de seus devaneios naquele instante. Só faltava uma semana. Uma semana.
Manhã de sexta-feira. Café na mesa e Dona Maria na pia. O garoto - Com vestígios de barba na cara, branco com a pele meio queimada pelo sol e cabelo desajeitado formando uma espécie de topete - avisou sua mãe que chegaria um pouco mais tarde aquele dia. Iria comprar uma camiseta nova para ir ao show.
Quase que no mesmo instante, as duas Marias disseram "Tudo bem, toma cuidado". A segunda disse isso ao ouvir Jhonatan dizer "Daqui a pouco eu vou pra casa do Paulo estudar viu Mãe."
- Tudo bem, toma cuidado. Mas porque você vai sair tão cedo? São sete da manhã.
- Eu não vou agora. Vou lá pelas nove. Tenho que estudar pra ser alguém na vida e sair desse lugar.
- O que tem de errado com esse lugar moleque? São Paulo é perigoso mas é um bom lugar pra morar. Eu gosto daqui. Nossa casa até que tá boa agora. Seu pai tá dando um duro danado todo fim de semana pra terminar essa reforma logo.
- Tenho dó do pai... Passa a semana toda fora trabalhando e quando chega aqui ainda vai mexer com cimento, tinta... - Ignorou o comentário sobre a cidade.
- O sonho de dar uma vida melhor pra família sempre dá mais força pro seu pai. Tão pegando mais pra ele ficar por lá, mas logo logo ele pode ficar aqui com a gente.
- É... Tomara né.
- Você anda estranho ultimamente. Tá acontecendo alguma coisa filho?
- Eu to normal, ué. Tá acontecendo nada não.
Maria, que preferia ser chamada de Cida, achava estranho o moleque, que também tinha concluído o ensino médio há poucos meses, sair tão cedo numa terça-feira de fevereiro para ir estudar com um amigo que ela nem conhecia. Aliás, as vezes chegava tarde demais, as vezes saia cedo demais. E o que mais dava medo nela: Aparecia com roupas novas hora ou outra, ou saindo pra cinema sem pedir dinheiro. O garoto dizia que economizava a mesada, já que passava quase todos os dias da semana estudando. Dizia que queria ser engenheiro civil e por isso estudava em bibliotecas públicas no centro de São Paulo ou na casa de amigos (Era o que dizia para sua mãe).
Jhonatan também tocava cavaquinho. Gostava de samba, pagode e rap. Era conhecido como neguinho por seus amigos e colegas e andava dando dor de cabeça para Cida que tinha medo do moleque se envolver com gente errada.
Duas Marias assistindo o noticiário em casa. Ambas pensavam nos filhos, mas com sentimentos diferentes. Maria Maria, com orgulho. Fazia a janta para o quando Guilherme chegasse em casa. Maria Cida, com desconfiança. Não se apressava em fazer a janta, já que o marido estava longe e o filho nunca tinha hora para chegar. Esse moleque tá aprontando alguma.
Guilherme desce do metrô na estação da República. Fones no ouvido, camisa xadrez, cabelo bagunçado, all star nos pés. Dali até a galeria do rock, onde compraria a camiseta, era bem rápido. Mas ele resolveu passar num sebo que ficava há algumas ruas dali. Compraria algum livro de arquitetura finalmente. Subiu as escadas, chegou na rua e foi caminhando. Ia distraído, quando percebeu alguém caminhando ao seu lado e apressou o passo. Percebeu que os passos da pessoa também se apressaram e sabia que não tinha mais jeito. Olhou com o canto dos olhos e viu um rapaz que aparentava ter sua idade. Usava capuz e andava com as duas mãos no bolso. Já era escuro e a rua estava vazia.
Dois policiais entram na rua. Avistam de longe um garoto acidentado e outro rapaz. Esse rapaz estava com os joelhos levemente flexionados, procurando algo nos bolsos do que sangrava desacordado numa das imundas ruas de São Paulo. Passava a mão rapidamente, de cima a baixo. O rapaz que sangrava era Guilherme. O rapaz que passava procurava algo em seus bolsos Era Jhonatan. Ouviu-se um grito do policial. 'EI!' Jhonatan, que havia encontrado um celular no bolso do desacordado, olhou a furto, assustado e com o celular nas mãos para o policial que vinha longe. Seus braços iam se erguendo, mas na metade do trajeto o policial disparou e acertou Neguinho. Sem chance de reação, sem chance de uma palavra. Mais tarde o policial diria que não podia saber o que realmente tinha acontecido minutos atrás no local. Estava apenas cumprindo seu trabalho.
- Me deixa ir cara, eu não tenho nada.
- Passa a bolsa playboy, perdeu porra, perdeu filho da puta. Vai logo porra!
E Guilherme tentou fugir. Levou um tiro na cabeça. Jhonatan que voltava de uma biblioteca e ia encontrar sua garota na mesma galeria para qual Guilherme caminhava, ouviu o tiro. Correu até a rua e viu uma rapaz loiro correndo, já longe. O coração ainda pulsava. Em choque, gritou socorro, mas seu grito foi baixo demais. Estava em choque. Começou a procurar o celular do garoto, ligar para a policia, ambulância. Só Deus sabe o desespero que o garoto sentia naquele momento. Até que ouviu um grito. No instante que achou o celular, ouviu um grito. Um policial. Teria levantado as mãos e gritado: Aqui, corre, ele está morrendo. Lágrimas de desespero escorriam dos olhos do rapaz que ia encontrar a namorada depois de um longo dia de estudos e um bico de empilhador de mercadorias com um caminhoneiro, quando foi acertado por um tiro certeiro e injusto de um policial. Enquanto caia, sentia vontade de gritar Não fui eu, mas as luzes foram se apagando, assim como as de Guilherme se apagaram no instante em que levou o tiro.
O rapaz, que veria Bono Vox na semana seguinte, que podia vir a se tornar um gênio da arquitetura moderna, ajudar sua mãe a superar as dificuldades, se foi, assim como outros jovens naquele mesmo dia, naquela mesma São Paulo, por aquele mesmo motivo. E o outro, que fazia pequenos serviços escondido de sua mãe - Que queria apenas que o rapaz estudasse por enquanto - e tinha começado a namorar com uma linda garota que morava num condomínio de luxo (Isso pouco importava para ele) e o presenteava com frequencia (Contra sua vontade) levou um tiro sem ter feito nada, por um daqueles que deveriam garantir sua segurança.
Duas Marias choravam. Não existe dor maior do que a de perder um filho. Naquela noite uma delas havia perdido. Maria Maria não sabia se conseguiria aguentar aquela dor. Maria Cida chorava com uma mistura de choque e alívio, pensando como estaria seu coração naquele instante se o tiro sofrido pelo filho tivesse acertado outro lugar que não o ombro.
A terceira Maria não sabia que seu filho estava envolvido com drogas, andava armado e tinha começado a assaltar. Essa também assistia ao noticiário e viu alguém dando a notícia, ao vivo, do que havia acontecido. Notícia que teve repercussão ainda maior quando foi provada a inocência de Jhonatan. A indignação das pessoas que jantavam e assistam o jornal das oito era passageira. Durava apenas o tempo que a notícia era dada. Assim que o apresentador mudava de assunto e começava a falar de esportes, já esqueciam. Talvez as pessoas tenham aprendido a conviver com todo esse sangue - Inocente ou não.
A terceira Maria não sabia que seu filho estava envolvido com drogas, andava armado e tinha começado a assaltar. Essa também assistia ao noticiário e viu alguém dando a notícia, ao vivo, do que havia acontecido. Notícia que teve repercussão ainda maior quando foi provada a inocência de Jhonatan. A indignação das pessoas que jantavam e assistam o jornal das oito era passageira. Durava apenas o tempo que a notícia era dada. Assim que o apresentador mudava de assunto e começava a falar de esportes, já esqueciam. Talvez as pessoas tenham aprendido a conviver com todo esse sangue - Inocente ou não.
Apenas uma pessoa nessa história toda não vai mais ter que ver tanta sujeira. Outros abririam os olhos se pudessem ver tudo que aconteceu naquela rua. Enquanto um corria, outro ajudava. Enquanto um morria, outro atirava. E de dentro dos estúdios de uma grande emissora, alguém sorria. Se não fossem essas fatalidades, seu salário gordo ganhado com a carnificina que chama de jornal não existiria.
Gostei muito do seu texto!!! Há tempos que eu não passo por aqui, e qd vejo, logo de cara aparece essa sua história...
ResponderExcluirSabe o que é mais foda? Eu leio histórias do tipo TODOS-OS-DIAS!!! Vidas e vidas perdidas em questão de segundos, por motivos dos mais volúveis... Como foi dito no O Poderoso Chefão: "Se tem uma coisa que a história nos ensina, é que se pode matar qualquer um".
Triste...